Às páginas que ainda não escrevi, rasguei-as. Evitei o insondável confronto entre a sintaxe e a vida. Cerrei os dentes; usei as mãos (pu-las à obra): estilhacei o discurso, incinerei a semântica, matei a pontuação, abortei a acentuação e vaporizei sujeitos e predicados por aí. Abstive-nos da minha literacia.
Aprendi a exercer o verbo na pior e mais inesperada das alturas. Jamais suspeitei que o viesse a fazer. Ainda agora, enquanto me penso, sou incapaz de crer que as minhas mãos possam rasgar. Rasgar páginas ainda não escritas é o pior dos meus crimes. É o mesmo que forçar-me a compreender o meu próprio coração para o poder fazer sangrar para além da sua morte. Começo a habituar-me a esta sensação de que estou constantemente a engolir torrentes de lava.
Fome vulcânica: quando o cansaço me atinge de forma assertiva e feroz abro o trinco das pálpebras e a janela do quarto para deixar que os meus olhos, esses dois abutres azuis, se soltem para a incógnita da noite em busca de páginas ainda por rasgar antes da escrita.
Violei-me sem dar por isso; escrevi-me depois.
Esta noite não soltarei os olhos; amanhã irei acordar num oceano de tinta.
Serei feliz no momento em que conseguir saborear de forma literal uma qualquer imagem.
A preguiça instalou-se nas pontas dos meus dedos e impede-me de redigir o manual de mim mesmo.
Fiz-me ao contrário, perdi a praxis e este é o avesso de mim.
E o amor é uma lágrima que escorre de baixo para cima!
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