ipodonan

Tuesday, February 05, 2019

sobre do viver a ciência

Ah, meu amor, meu amor, meu tão grande amor - gritou e quase uivou, tal era a dor - as saudades que eu tenho de ter caspa! As saudades que eu tenho - continuou - das tuas idas à farmácia e do cheiro a petróleo de cada nova panaceia. E continuou e continua: Agora somos o cheiro a mijo e a simpatia da Santa Casa. Meu amor, meu amor, tanta discussão, tanto refutar e, agora, a incapacidade de conseguir aceitar que o amor não pode ser só a rouquidão, o extinguir da reclamação e, neste quinto andar, eu e tu, meu amor, a morrer dentro de umas fraldas. Meu amor, porque não fomos, naquele Verão, a Marraquexe?

Thursday, May 17, 2018

sem título

calou-se com fito, com certeza, com pungência, com verdade, vontade e idade; calou-se para se fazer ouvir.

antes de se calar disse:

hoje não tomei banho, é preciso que o saibas, é preciso que disso a tua epiderme tenha a certeza para que no momento de a tua língua percorrer a distância subjectiva entre o dedão do meu pé e a afrontosa verdade dos meus mamilos saiba exactamente a rota sinestésica que a aguarda. 

anoiteceu entretanto, muito devagarinho; diz-se que anoiteceu, esse dia, com algum cuidado e pudor.

calou-se com fito, com certeza, com pungência, com verdade, idade e rigor. 

calou-se bem. calou-se no meio de uma tremenda onda de uma, até então, desconhecida forma de calor.

nasceu, assim, nesse calar propositado daquela boca, uma nova forma de dizer: meu amor!  

Wednesday, May 25, 2016

...

receio estar quase a morrer. se se confirmar, instituam-me como um visionário/sapiente. se não se confirmar, então, institucionalizem-me, devo estar a precisar!

Thursday, July 02, 2015

o cínico já não mora aqui



a tarefa do cínico, convenhamos, em muito pouco está facilitada. imaginemos que o cínico se quer debruçar SOBRE a política coisa: na direita vai encontrar parco território porque a direita fala, e cala, por si mesma e no que à esquerda concerne, não tem outro remédio, note-se, que não seja o de se calar; isto porque a esquerda é um mero directo ripostar ao que a direita desenha, quer isto dizer que a esquerda é um birrento espelho, e não menos maior, de um mal, cada vez mais, menor. no que à religião confere, bem, temos de asseverar, o cínico, o nosso cínico, boceja; boceja porque religião é estar lado a lado/passo a passo/boca a boca/ombro a ombro com o divino mas, neste momento, o divino tem muito que fazer: articular discurso (mais ou menos presente e (invisível) com a tal direita e esquerda), arrrrrebentar pessoas bomba por aí e ser o sempre eterno estandarte que se carrega para que a vida faça sentido e para que a vida seja muito plural e outras coisas acabadas em al (mas não me venham com pessoas doentes e muitos diferentes de mim). o cínico, perante isto, olha para o domínio do "social" e, sem se querer adiantar por tal domínio, porque esse domínio depende dos acima referidos, feliz ou infelizmente, limita-se a isto: morrer, ridiculamente, de pila na mão, no átrio do prédio, porque, vá-se lá saber porquê, se estava a masturbar, no referido sítio, quando o, tão aguardado e, novo terramoto sobre (ou sob) lisboa se deu. o cínico morre sem se vir. esta não é exactamente a narrativa da tarefa do cínico; mas podia ser. o cínico é, apenas, uma, muito ínfima, pincelada do dali naquele quadro sobre a masturbação e o devir. o cínico é, tal como a sua tarefa, uma ideia... uma recordação de algo que nunca chegou bem a ser; um grande, simples, e, sempre eterno: pffffff! o cínico é um lugar que nunca tem onde se acontecer (mais). o cínico está morto e enterrado e o correio da manhã nem deu por isso! sim, é verdade, refiro-me à hipótese de um cínico português... quanto aos outros, aos de outros países, já não sei, os hugos mestres amaros, e outros parvalhões afins, lá deles, que se atrevam a aos seus, medíocres, desenhos fazer/escrever/partilhar/arrotar. o seu a seu dono e essas merdas todas. eu até odeio o cinismo. no algarve há uma coisa maravilhosa, no meu algarve, pelo menos, que é: cínico é sinónimo de sovina. no algarve é que se está bem, cada vez menos dúvidas sobre isso tenho. 
 errei: em portugal não arrebentam religiosas pessoas: por fora.

Sunday, June 21, 2015

ão.

há um incêndio em Carviçais e Sincera era a Pena, e atenção, não era a pena filha de Pénia porque Pénia é a penúria numa denúncia de Platão; Sincera era a Pena, pois então, a filha de Penosa Aparição dos Santos Perdição. retomemos a questão/composição; Sincera era a Pena porque, mesmo não sendo a descendente da Pénia de Platão, era qualquer coisa de intermédio, a resvalar para o nojento/não desejado/ido/traído e cuspido, nesta franca desilusão que é o vocábulo: CIVILIZAÇÃO. ão, ão, ão, há um incêndio em Carviçais e os da realidade ais mordem, qual ingrato cão. 

Saturday, May 30, 2015

parafina

amar rima com sina,
juntam-se os trapos logo à esquina.
menino dá-se todo à menina,
vida que ela nem imagina.

a casa é tosca, é pequenina:
pão, tecto, tusa e Tofina.
um abraço pela matina:
traz certeza e mais bolina.

mas o cavalo perde a crina e
a muralha nega a china;
eis que a galheta vem surda e fina,
alguns perdões, medo e surdina.

a culpa morre sempre albina; hoje
ela já nem opina.
lar casa com estricnina,
o cliché fica na vitrina.

a banheira vira puta tina,
a mesa põe-se tão cretina;
falta o guito, ó catarina:
liga à tua tia aldina.

ontem canora, agora rapina,
ave quer-se é assassina;
asas e paixão interina,
realidade má, cabotina.

ela boicota esta rotina,
volta a si mas clandestina;
ele arma a carabina
o resto é slogan, pivot, chacina.

apenas começa aquilo que nunca termina.
apenas começa aquilo que nunca termina.
alguma coisa muito asinina
não pára esta parafina!




Friday, April 24, 2015

palavra/corpo

musicando
musicou-se
nessa tarde tão pouco finda 
e findando
findou-se 
com pouca música 
muito linda. 

da ribanceira 
atirou-se
quase nua
contorcida
e na água 
se espelhou 
a sua sombra
já sem vida.

os que ficaram
lamentaram
de tal beleza 
o fim
entre os dentes
fixaram
que a vida
reflexo é
do seu fundamental
ínterim.

eu quando escrevo, enquanto busco as palavras, tenho uma coisa meio rídicula mas muito concreta: esfrego freneticamente as pontas dos dedos como se à espera estivesse que desse fricção uma palavra surgisse. concretizo, de maneira pura, tosca e aflita o surgimento da palavra seguinte, da palavra última, da palavra nascente, da palavra ainda por pensar e escrever. no fundo, no fundo, tudo nasce e morre no, e do, corpo. é como se o corpo escrevesse mais do que a cabeça! 

Sunday, April 12, 2015

a sondagem

não sendo exactamente esquiva, pastosa ou, até, selectiva, e electiva, é, 
porém, efectiva, e corrosiva: 
a dor.

companheira forçada e altiva
não lhe conheço início, meio e fim
porque comigo se atreve 
à deriva
e comigo vive, permissiva,
ao alimento que lhe dou
e,
nada intempestiva,
ausculta-me,
de baixo a cima,
nada putativa,
do meu real cativa,
como eu lhe...


escrita e dor: latejam birrentas, interrompem-se, a si mesmas, no auge.
sonsas, deixam-se ficar, na sua ausência, em mim sossegadas para depois,
qual pequeno-almoço pelo amante à cama trazido,
pela surpresa, de mim adicto fazerem e, assim, 
com traminhas e da minha história fascículos,
o seu reino firmarem.


escrita e dor, dor e escrita, escrita e escrita, dor e dor,
dor da escrita 

escrita da dor:
raiz comum: 
fodem a paciência do ímpeto visionário
porque apenas me tornam habituado do seu passado e, do seu, tão presente, presente.
o futuro está sempre por escrever; todos os dias por doer.

e escrevo apenas sobre a escrita física sobre a física dor
porque 
a escrita da dor da alma é, tão gigantescamente, 
apenas:
o poço de um petróleo que, estrategicamente, não se deixa sondar. 

Sunday, February 08, 2015

(des)ver



depois de ter lido uma coisa de Manuel Cintra: poesia, ou ser-se poeta, é o exercício do puro, pardo, pleno, parvo, pérfido, poroso, e até, piroso, direito de (des)ver!

Saturday, January 31, 2015

matéria abortada... porquê?


aos dezoito anos a princesa aceitou ser rainha, sendo que podia ter rejeitado a sucessão e, como tal, esse assunto não é para aqui chamado, mas fê-lo com a firme condição de que apenas a isso acederia se nunca, durante todo o seu reinado, tivesse de sujar as mãos. havia sujado as mãos em pequena, naquela tarde em que caçara um grilo nos jardins do palácio, mas a experiência, e o contacto entre a terra molhada e as cutículas, não havia sido confortável nem interessante, e, por isso mesmo, se decidira, logo nessa longínqua tarde, a nunca mais em toda a sua vida voltar a sujar esses órgãos.
a cerimónia da coroação, como é suposto e óbvio, foi envolta em pompa, fausto e protocolo. no chão das ruas de todo o reino foram espalhadas flores, apanhadas por muitas mãos, bandeiras coloridas foram hasteadas, por outras tantas mãos, em todo e qualquer canto, iguarias de grande qualidade e quantidade foram, com as devidas antecedência e mãos, preparadas e a música fez-se ouvir durante dias a fio; foi uma cerimónia algo longa, é preciso que se note. delegações e comitivas vieram de todos os vizinhos reinados e pode dizer-se que o acolhimento, feito a mais de mil e uma mãos, não menos do que perfeito foi.
a única coisa que nela mudou foi o nome; deixou de ser a princesa das mãos limpas e passou a ser a rainha das mãos limpas. convém, nesta altura do relato, fazer notar que as mãos da, agora, rainha das mãos limpas eram umas mãos que em nada se verificavam especiais e que o facto de se manterem impolutas nada de particularmente belo conferia às mesmas.
a rainha das mãos limpas tinha umas mãos absolutamente regulares, umas mãos iguais às de qualquer rapariga de dezoito anos, umas mãos normalíssimas. a própria rainha, em si, nada tinha de destacável no que à beleza pudesse dizer respeito, era uma rapariga cuja figura nada acrescentava ao adjectivo: corriqueiro.
passaram alguns anos, dois, para que a narração mais precisa seja, e a rainha das mãos limpas já plenamente exercia funções sem que, no que à competência concernia, nada de incorrecto, transviante e desacertado se lhe houvesse a assinalar. tornara-se naquilo que se pode, correntemente, designar: uma rainha e pêras. e é justamente aí que bate, ou melhor: batia, o ponto. a fruta. era no pomar, à sombra das mais variadas, fecundas e frutíferas, no mais literal sentido, árvores que a soberana tomava significativas e graves decisões. havia, contudo, uma certa macieira que parecia obter dela, a rainha, a maior predilecção e que, no que à arte de reinar dizia respeito, quase que como um poderoso, e simultaneamente simples, totem funcionava, como se repleto estivera de talismânicas qualidades. a macieira, não particularmente robusta ou bela, justamente como a rainha e as suas limpas mãos, parecia ter em si concentrada toda uma tácita teia de virtudes. fora protegida pela sua sombra que a rainha decidira e decretara ser obrigatória a música nos berços, a proibição de leques e abanicos, pois o calor é filho do céu e do chão e não compete ao homem o mesmo combater ou negar, impusera a metáfora e a metonímia como direitos incontestáveis dos plebeus e fizera constar nos reais autos que leitor é um trabalhador cuja faina é igual à de um outro trabalhador qualquer. tudo isto, ao longo desses dois, de soberania, anos se passou sem que a nossa protagonista uma única maçã, ou qualquer outra peça de fruta, por vez alguma à boca levasse. a rainha alimentara-se, durante todo esse tempo, e ao contrário de todos os anos em que apenas princesa fora, de húmus, água férrea e fezes de pequenos pássaros.
certa tarde de certo dia, ao septingentésimo nono da sua governação, deu-se na monarca uma súbita e ousada mudança. passavam largos minutos das treze horas, mal ainda acordada estava, a rainha deitava-se sempre tarde e, assim sendo, nunca cedo do sono sobressaía, quando, ainda meio entorpecida, mas já sob a sua predilecta macieira, rodeada de conselheiros e superintendentes, ergueu para a copa da árvore o olhar e uma, praticamente, pútrida maçã a deteve. cessou, nesse mesmo instante, a dissertação que sobre a obrigatoriedade de viajar ao cidadão comum era devida e obrigatória e, muito clara e repentinamente, disse:
- minha és hoje, ao meu estômago pertences, tímida e resignada maçã!

Sunday, December 07, 2014

o fumo e a lembrança

estava agora a fumar à janela, cá em casa não se fuma nos aposentos, e lembrei-me de uma velha. durante a minha infância e adolescência, eu passava horas e horas na açoteia do meu prédio, que era bastante alto, considerando o tipo de habitação circundante, mesmo no centro de olhão, ali ficava horas, sozinho, a ver a cidade, as pessoas a passar na rua, o cubismo tão arabesco e típico da cidade, olhão passou de vila a cidade no dia em que fiz nove anos, a ria formosa mesmo à frente, os barcos na ria e até conseguia ver, lá ao longe, as ilhas (armona, culatra e farol). muitas vezes tinha contracena, ou companhia, neste açoteísmo. essa companhia, e mais tarde contracena, quando comecei a fumar e o fazia durante essa contemplação, era: a velha que fumava às escondidas. havia uma velha que todos os dias, impreterivelmente, às três e às seis da tarde, numas ruas à frente, subia à sua açoteia e ia fumar, visível e claramente à socapa da família que com ela vivia, o seu cigarrinho. fazia-o sorrateira, furtiva e rapidamente. aposto que fumava sg filtro. a velha era viúva, há muitos anos, por isso estava sempre vestida de preto, nessa altura o luto era para a vida, e era avó de uns miúdos com que eu brincava às vezes e sogra de uma amiga da minha mãe. hoje lembrei-me da velha que fumava às escondidas. aposto que já morreu e cheira-me que não foi de cancro do pulmão! hei-de perguntar, no natal, à minha mãe se sabe o que dela foi feito.

Thursday, November 27, 2014

empirismos do amor

ver sem ti terras com escassa graça pouca ou nenhuma graça tem. 

Tuesday, September 23, 2014

splinter number 4


splinter number 4:

que é o amor senão a casa de um novo idioma?

peugeot partner



comecei a escrever um poema ontem no cinema ideal. acabei-o agora na cama ao acordar. obrigado Joaquim Pinto e Nuno Leonel pelo imperdível e, quase, inominável acesso ao sublime  que 'E agora? Lembra-me' dá. 
reza assim o poema, que se chama:

Peugeot Partner
Internos da doença 
Internados na vida
Tão grávidos de cinema;
Juntos:
Pesadelo, 
Pénis, 
Pêlos e 
Periferia 
Do artifício
De Cristo 
Da poesia. 
Bom natal, Morte, abortámos-te hoje, 
corremos assim mais um dia,
desfalcando-te o norte. 
Ão ão - calado, Rufus, está tudo bem, não há disso precisão.
Aqui tudo há-de medrar; 
mesmo quando já não houver o que colher haverá sempre o que plantar.

Thursday, March 27, 2014

simplesmente

falta-me à escrita o tempo atroz
ou
tão
simplesmente
o tempo a sós. 

Tuesday, February 11, 2014

tão cheios de sol

hoje sonhei-nos em paris
a cidade com que tu embirras e de que eu tanto gosto.
andámos por lojas foleiras, a rir dos donos e da roupa,
e num bistrot roubaste os pratos ao garçon para lhe trocar as voltas e estes irem para as mesas erradas.
rimos muito no sonho.
não rimos mais do que é normal; rimos de uma maneira diferente.
mas acordei, como habitualmente, com o teu perene calor
e a ponta do teu gelado nariz a roçar-me na orelha.
saíste de casa, para o frio e chuvoso dia, mas deixaste-me o dentro de casa e o dentro de mim:
tão cheios de sol. 

Sunday, December 08, 2013

talvez

talvez amar muito seja
ficar embevecido quando se descobre dois caroços de pêras abandonados
dentro da chávena que abandonada ficou em cima da mesa 
talvez amar muito seja
achar isso a coisa mais ternurenta do mundo
talvez amar muito seja
este simples pensamento imediato 
(que precede a elaboração desta composição):
olha, o meu amor comeu duas pêras! 

Friday, July 05, 2013

verbo: dormir


gosto de dormir aos bocados, solavancos, numa sucessão de variadas porções. gosto dessa procissão de pequenos goles de desvida.

Wednesday, May 01, 2013

poema dos últimos mui últimos dias

e eis que se atinge, na poesia, um estado que define que
o poema deixa de ser uma consequente necessidade:
passa a ser o processo do olho.
do olho que vê o antídoto do estar.
o poema nada mais é do que: 
a minha vontade de não concretizar o fim do poema.
ser livre é deixar a poesia voltar à sua nascente, voltar à sílaba primeira, iniciar a escrita.
poesia é, neste momento, a visível vontade de nada transparecer,
esta vontade férrea de não, me, ler.
esta, louca, vontade de nunca colar ao sentir o redigir.
a poesia é uma coisa que não encontra língua nem solução.
a poesia é o meu pai a morrer antes do momento em que me fez.
a poesia é a minha mãe ter morrido à boca da puberdade.
a poesia é o náufrago do meus avós. 
a poesia é do homem ter nascido ventre e não fábula onde se escreva. 
a poesia é uma certeza que anuncia que nada do seu fim o calor me trará;
é a morte nos dedos dos pés,
é a vontade de não se - o calor-  mascarar.
a poesia é aquilo que me faz procurar na vida a inesperada composição.
a poesia é aquilo que une as letras da palavra: não!


Thursday, April 25, 2013

haiku pós-moderno

passarinhos entretidos no ar ignoram
humano casal de pombinhos que
bêbado sobe a travessa das mónicas. 

a calçada era portuguesa.

eu já tive alegria - disse ele.
onde? - perguntou ela.
nas pontas dos dedos, claro; onde haveria de ser? - respondeu e perguntou ele.
poderia ter sido sobre os ombros - afirmou ela.
sorriso rasgado dele e a resposta - a alegria nunca é sobre. é porém.
porém como liberdade? - voltou ela a perguntar.
porém como cidade - tornou ele, uma vez mais, a responder.
cidade onde se anda? - sem hesitação, dela, surgiu esta nova pergunta. 
cidade onde se cansa, onde se descansa, onde se balança - assim foi dele a resposta.
ah, já teve alegria sinónimo de maresia. - concluiu ela.
sei lá, estava, nesse tempo, num alegre e não pensante navegar - despachou-a ele. (enquanto observava o sangrado palito que acabara de lhe escarafunchar o canino dente).

o empregado de mesa, abílio de seu nome, teve nesse mesmo instante um cardíaco ataque. enquanto sucumbia, vieram-lhe à lembrança risos de meninos outrora à margem do riso risonhos e molhados. 

enquanto a ambulância subia a rua:

o que é, afinal, a alegria? - teimosamente, uma vez mais, dela saiu uma nova pergunta.
é a toalha de uma praia que não se esquece - murmurou ele.

hora do óbito: 16h22.

a calçada era portuguesa.


Monday, April 22, 2013

a poética praxis dos dias

enquanto pensava em ti - meu amor,
no quanto te amo e 
na sorte que tenho;
dei por mim a guardar o frasco do Biokill no frigorífico. 

Tuesday, April 09, 2013

limonada

a esquadria da janela da cozinha devolve-me alguma verdade,
alguma verdade do mundo, e recorda-me:
a limonada que estou a beber não é filha dos limoeiros viçosos e povoados do vizinho.
por isso,
sabe a cera e a multibanco, 
sabe a bulício de sábado à tarde, 
sabe ao cancro que um dia há-de vir (em directo ou diferido; a mim ou aos meus). 
suspiro e, enquanto dou um carolo seco na bancada de madeira, mal, prensada, penso:
oh, raios,
neste mundo já nem se pode acre, em sossego, beber. 
a esquadria da janela da cozinha devolve-me alguma verdade,
alguma da simples verdade do mundo, e atira-me isto:
ainda bem que às vezes voltas aos anos noventa; 
à pureza das primeiras descrenças na vida, 
aos teus vinte e tais.
porque o futuro é tão assustadoramente complexo na sua simplicidade 
e
nunca te dará forças para cuspir a venenosa limonada:
quando deres por ti, será aquilo que te circula nas veias
enquanto lutas e protestas torpe; 
au ralenti. 

Thursday, March 28, 2013

a nossa casa

a nossa casa abre e fecha e fecha e abre mas nunca está fechada e
nunca está, tão só por isso, assim aberta.
a nossa casa é pequena, .....


não gosto nada disto.


não era sobre isto que eu queria escrever; queria escrever mas não queria escrever assim.

não estou a escrever bem. não estou a escrever, bem, a nossa casa.

há dois dias que ando com um poema na cabeça. um poema que, apenas, sei que acaba assim:

a nossa casa cheira ao meu mau hálito matinal e
a bolachas ao fim do dia.

(talvez a nossa casa não seja um poema. talvez a nossa casa seja um exercício da prosa.)
por acaso, acho que não, acho que a nossa casa pode caber dentro de um poema; eu é que ainda não cheguei lá.

mas hei-de chegar.

bolachas: a única palavra a constar no futuro poema que há-de panegiricar a nossa casa, meu amor!

hei-de escrever um poema que acabe com a palavra: bolachas!

Wednesday, February 20, 2013

quem (não) parte e (não) reparte

não repartiu mas também não partiu, pura e simplesmente, deixou-se ficar. deixou-se ficar no que conhecia, no que lhe era próximo, familiar, vizinho; deixou-se ficar naquilo que tinha aprendido, ou aprendido a convencer-se, que era seu. 
e uma vez mais o sol se pôs e uma outra vez a noite veio. a noite veio sem pudores, sem anúncios prévios, sem sorrateiros pés de lã; a noite veio como tinha de vir, veio nocturna. fumou um cigarro, dois cigarros, três cigarros e quando deu por si já depositadas no Cinzano cinzeiro estavam vinte, pouco odorantes, beatas umas sobre as outras depositadas, quais corpos numa vala comum displicentemente, aos vermes, atirados. e foi então que acordou. acordou a meio da noite, que veio nocturna, sem durante a mesma, sequer, ter adormecido; acordou não para a vida mas, isso sim, para a morte e percebeu que a morte há muito se tinha instalado naquilo que o discorrer dos dias afirmara, talvez algo errada ou ilusoriamente, como vida; como: a vida. e foi então que a questão se lhe afigurou: é isto a vida, é isto uma vida, então, é isto que é a minha vida? muito imediatamente, e sem deixar de casquinar, de si para si disse: oh, quantas questões dentro há de uma mesma! e, nesse momento, efectivamente, adormeceu: conjugou concretamente o verbo.
doze passos dados estavam na sua de sempre rua, já alta ia a manhã, quando um pombo morto lhe caiu aos pés. ajoelhou-se e pegou no animal de cujo interior das penas se desprendia um odor confuso. um odor a podre e amanhã ao mesmo tempo; um odor estranhamente semelhante ao que se imagina ser o debaixo da terra ao mesmo tempo que anuncia uma memória de um nunca navegado mar. subiu a rua com o pássaro morto nas mãos e percebeu que se não partira nem repartira fora porque queria na sua vida tentar, em definitivo, voar. 
nessa noite bebeu vinho, partiu o Cinzano cinzeiro, atirou-o janela fora, e começou a escrever nas paredes da casa o que nela, e nele, ainda havia por, ali, viver. e às paredes confessou de quem gostava e de quem gostava de gostar. 
na manhã seguinte acordou sozinho mas com um bilhete na almofada.
o bilhete dizia: logo à noite trago eu o vinho. ainda bem que não me (re)partiste o coração! 

Wednesday, January 23, 2013

uma prazerosa quadrinha

dá-me gozo que uses as minhas gravatas,
prazer que encabeces os meus chapéus.
eu sei que não és muito de datas                   mas
fazes-me, tantas vezes, chegar aos céus!

Sunday, January 13, 2013

a neurose

penso numa frase que, até com alguma frequência, ouço: as pessoas são bichos de hábitos. e concordo, reconheço que sim, aprovo, dou a mão à palmatória, em suma, não viro as costas a esse facto. as pessoas são, MESMO, bichos de hábitos, de rotinas, de rituais, na verdade, convenhamos, repetições (e eu estou a sentir-me a Carrie do Sex And The City neste momento mas não me importo nada). as pessoas são, além de bichos de repetições, bichos extremamente complexos. e porque vim eu aqui parar? porque estou eu a dar-me ao trabalho de elaborar sobre isto? porque, uma vez mais, ao retornar a casa, depois de uma jornada de labuta, no carro de praça (é preciso que fique bem claro que eu, além de ser uma pessoa que muito anda de carro de praça, encontro nisso uma tão libertadora coisa que à vida concerne; os momentos em que ando de carro de praça são, efectivamente, e paralelamente aos momentos em que caminho pela cidade, os momentos em que tenho a possibilidade de estar concretamente comigo. são momentos de solidão. é claro que, com tanta regularidade na actividade, já arranjei estratagemas, que nem vou aprofundar, para não dar sequer possibilidade ao condutor de comigo interferir. isto não é ser arrogante, é garantir um bocadinho de qualidade de vida. e, garanto, andar de carro de praça é um bocadinho da qualidade de vida que, pelas, ironicamente, circunstâncias da vida, me dou ao luxo). adiante... pessoas: bichos de hábitos e repetições. estou eu a chegar a casa e a pagar a jornada e dou por mim a, uma vez mais, e como tantas vezes faço, dizer ao senhor para ficar com a demasia. hoje, e é incrível como o valor da jornada é variável, sendo que o percurso é, repetidamente, lá está: bichos de repetição, o mesmo, o valor da jornada foi: (até vou escrever por extenso) quatro euros e quinze cêntimos e eu dei ao senhor uma nota de cinco euros e disse: "fica assim". faço isto todas as noites, ainda que os valores vão variando aqui e acolá. e hoje, ao sair do carro de praça, perguntei-me: porque fazes isto? e a resposta surgiu logo: faço por ritual e faço por esperança. passo a explicar: não faço isto porque nado em dinheiro e também não faço isto porque sou um excelso ser, carregado de bondade, que prefere tirar de si para ao outro dar. faço isto por ritual, é essa a verdade. faço isto por ritual esperança. porque no fundo, e isto é que é engraçado, cada vez me leio mais como alguém que pouca crença tem no divino mas que não deixa de ter uma certa ritualidade não crença. é como brincar com... brinco com a não crença na esperança que ela, a esperança, de seu possa vir a trazer. ou, pior ainda, do que me possa vir a trazer. e isto surgiu há pouco mais de dez anos atrás. um dia fui fazer um casting para uma telenovela da tvi, aquilo ficava no caralho mais velho (como ficam todos os estúdios) e eu lá fui de metro até ao campo grande e depois fui apanhado, em frente à estação de metro, por uma carrinha da produção. ao entrar na dita percebo que havia outro rapaz, outro actor, e que estávamos os dois a "concorrer" para a mesma personagem/oportunidade. lá fizemos o casting e lá o driver nos trouxe de volta a esse, tão conhecido, campo grande. antes de entrar no metro sou interpelado por uma pedinte e automaticamente levo a mão aos bolsos e dei-lhe todo o dinheiro que neles tinha. e enquanto o fiz pensei: dou-te isto hoje na esperança de que amanhã eu venha a ter muito mais (ou seja: que fique com a merda do papel e que venha a ganhar uns cobres). e não é que funcionou?! fiquei com o papel, fiz a novela, fiquei a ganhar mais. a partir desse dia passei a dar, ritualmente, a quem me pede. de uma forma muito egoísta, confesso, porque quando dou penso, melhor, recito para mim uma frase que acho que vem da minha adorada e falecida avó: que a mim me sobre e a ti não te falte (ou o contrário, já nem sei bem, mas é assim que o faço). e faço-o porquê? porque sou uma pessoa e as pessoas são bichos de hábitos; as pessoas habituam-se às repetições, habituam-se a essa ideia, habituam-se à esperança, conforto, segurança, confiança que a repetição lhes dá. mas isso, no fundo, tenho essa noção, é ser completamente neurótico. as pessoas neuróticas agem por e pela repetição, agem pela sensação de controlo que a repetição lhes dá, agem por e para esse conforto. e dou por mim a rever-me e a lembrar-me que eu sou daquelas pessoas que verifica três vezes antes de sair de casa se as torneiras estão todas fechadas. sou daquelas pessoas, desde criança, que numa calçada só caminha sobre as pedras pretas. sou daquelas pessoas que abre e fecha a mochila três vezes (o número três é, além de importante, determinante) para perceber se as chaves de casa, o telefone, os headphones e os lenços de papel lá estão. lembro-me que quando era criança tinha um auto-jogo: ao abrir a porta do prédio tinha de correr e trepar o lanço de seis degraus do primeiro patamar das escadas do prédio antes que a mesma, a porta, nas minhas costas se fechasse. se o conseguisse estaria tudo bem; se não o conseguisse algo poderia, e iria, acreditava eu, correr mal. e ser neurótico é isto: é ter medo que não ter qualquer tipo de, por mais ridículo que seja, esperança seja o vazio absoluto. ser neurótico é não ter a capacidade de lidar com a ausência da esperança. as pessoas são mesmo bichos de hábitos e ter esperança é uma patologia que, talvez, lhes seja mesmo fundamental. ainda não percebi o peso da minha neurose nem da minha necessidade, refutação, da esperança mas sou ritualista e, confesso, isso faz-me sentir, muito, como hoje, e como tantas vezes, uma pessoa. faz-me sentir mais pessoa; por mais neurótico que isso seja. ser neurótico faz-me sentir vivo. e viver é uma coisa algo complexa e HABITUAL (até ao dia em que a gente morre). viver é repetir todos os dias o estar vivo; coisa que, por enquanto, com tudo o que isso implica, até vamos sabendo o que é. viver é verificar... uns fazem é mais prementemente do que outros essa verificação, apenas isso.  talvez seja isso a neurose... 

Sunday, January 06, 2013

"unless i'm led"

há coisas que não te digo:
como o cair dos dedos nesta manhã,
como o ouvir-te ressonar,
como a luz da nossa casa a uma hora que não conheces.

há coisas que não sabes de mim mas
que a ti dizem respeito:.

como a vontade que tenho que ames tanto esta canção quanto eu...
espero que a descubras e,
enquanto o faço,
cada vez mais nela amo a minha presença e a tua ausência.

tu:
 é a mais acessível e mais difícil palavra que conheço

sinto?


nós faz-se no t dois das cabeças.

nós existe no t zero dos polegares que procuram o bater de um mesmo coração.

nós é olhar o mesmo tecto e perguntar: tens fome?

nós é ter fome (ao mesmo tempo; sobre o mesmo tecto).


Thursday, December 06, 2012

panegiricar o amor

há, justiça seja feita, que na minha vida panegiricar o amor.
e para que o, devido, panegírico, seja feito há que tornar claro que:
- o meu amor é a coisa mais importante da minha vida
- o meu amor sabe sempre como me há-de fazer sentir melhor
- o meu amor escuta-me (isto vale o peso do meu amor em ouro)
- o meu amor diz-me coisas ao ouvido que eu sempre desejo ouvir
- o meu amor é, ao acordar, ao meio do dia, ao jantar, ao deitar, a pessoa mais singular e simples que eu conheço, não tem qualquer tipo de artifício, jogo, glamour, esquema: é o meu amor
- o meu amor agarra-me de uma forma paradoxal; agarra-me com as maiores ganas do mundo e agarra-me com o cuidado que se agarra algo que se pode a qualquer momento quebrar
- o meu amor deseja-me à distância, e eu sei
- o meu amor deseja-me na lembrança da noite passada; e eu sei
- o meu amor diz-me as coisas na cara, sem medos, sem defesas, sem acusações, sem farpas; eu sei
- o meu amor tem rituais só dele, eu sei
- o meu amor faz questão de mostrar-me o quanto eu sou desejado; eu sei
- o meu amor perdoa tanta coisa; eu sei
- o meu amor aborrece-me às vezes; eu sei e ele sabe
-o meu amor aborrece-se com o meu demonstrado aborrecimento; eu, também, sei
- o meu amor saber esperar; eu não sei
- o meu amor é muito respeitador, eu, no fundo, sei
- o meu amor nunca é feroz mas diz; ao contrário de mimo
- o meu amor parece que está em todo o lado e, ao mesmo tempo, parece que em lugar algum está
- o meu amor recebe-me em casa e quer logo levar-me para a cama, eu gosto
- o meu amor não lava a louça enquanto eu não estou; eu desgosto
- o meu amor nunca responde às mensagens de telemóvel em tempo real
- o meu amor é assim, meio aluado, e eu, no fundo, nem acho mal
- o meu amor come, com apreço, a comida que eu faço
e
 todos os dias adormece no meu regaço.

piroso? sim. mas só quem tem um amor pode falar disto.

eu, pela parte que me toca, não trocava uma palavra do que escrevi, ao meu amor, por nada.

vou deitar-me e sentir o seu respirar no meu pescoço.

e isso não se, simplesmente, define. isso sente-se: no amor.

o meu amor é esse descanso.

o meu amor é a melhor coisa do, meu, mundo.

sorte no amor; azar no jogo... que se fodam os números... eu durmo com aquele homem/amor.
e feliz de mim...

o meu amor é a minha lotaria...

Tuesday, November 27, 2012

a poesia

a poesia é a coisa, efectivamente, mais estranha que conheço. a poesia é a coisa mais paradoxal, descontínua e solitária que conheço; é uma matéria insondável mas, tão, intrinsecamente concreta. a poesia é isso e nada mais do que isso: ESTRANHA! não se explica, simplesmente não se explica. eu não consigo explicar, não consigo mesmo. como é que se explica a poesia? como é que se explica a sua génese, o seu decorrer e o seu findar? se eu tentar explicar, inclusivamente num poema, o seu inicial momento fico sempre com a sensação que me remeto a ela como referente. e eu creio que a poesia não pode ter-se a si mesma como referente. há tanta coisa englobada, há tanta coisa a incorporar. se tento explicar-lhe o processo passo a ser-lhe, eu mesmo, estranho e à mesma ficar a dever. se ao seu fim tentar dar uma solução, então, passo a ser um vassalo da sua solução e, creio eu, a poesia não intenta, sequer, encontrar em si uma solução. mais não posso dizer do que: a poesia acontece. a poesia acontece-se. é curioso que, sendo eu alguém que se preocupe com esta matéria, muito pouca poesia consuma. eu não leio poesia, simplesmente, não leio poemas. verdade seja dita, leio os meus poemas; leio os meus poemas porque os tento compreender, porque os tento apurar, porque os tento depurar, porque os tento englobar na magistral assunção que tenho do que a poesia deve ser. mas isto é muito falacioso; é falacioso porque a poesia é paradoxal e, parecendo simples, sim, porque o ocorrer de um poema nada mais é do que simples, é de uma complexidade imensa e infinita. a poesia é uma coisa que se instala; instala-se dentro de nós. e fica; a poesia fica. é manhosa: vai e vem. não se lhe pode controlar o caminho, não se lhe pode controlar os ímpetos, em suma, não se lhe pode controlar a vontade. a poesia tem uma vontade autónoma e nós, os seus serviçais, nada mais somos do que instrumentos da sua vontade. 

a questão, está, no fundo, no olhar; a poesia nasce, decorre, e morre, sim, porque ela morre, ou esmorece, no nosso olhar. a poesia é uma matéria, que nem qualificar consigo, que se nos cola ao olhar (e refiro-me ao olhar no sentido figurado, claro). a poesia ocorre-nos no olhar; no olhar o mundo e no nosso ver o mundo olhar e no nosso ver o mundo olhar-nos de volta.

resumindo: a poesia é intermitente, manhosa, birrenta, escrupulosa, diva e muito, mas mesmo muito, concreta.

a poesia é, sendo a coisa mais simples, a coisa mais complicada que conheço e resume-se a isto:


nos braços dos meus amigos,
nos seus abraços, 
aprendi hoje 
a querer para sempre flutuar.

braços que foram abraços,
braços que foram vontade
braços que foram onde sei navegar e naufragar.

braços que nada mais me devolvem do que onde sei pertencer
e onde quero, para sempre, ficar.

---------


a poesia é a coisa mais estranha que conheço. a poesia é a coisa que mais, da vida, me faz querer saber: porque a poesia, para mim, se alimenta, sustenta e insufla de vida. a poesia é olhar; e olhar é ter palavras para escrever naquele sítio do peito onde nos habituaram a ter um músculo que coração se chama. e poesia é dar lugar a essa locomoção. poesia é, ao olhar, saber o que pôr lá dentro; lá dentro desse lugar. 

afinal cheguei, aqui, a uma conclusão, poesia é inscrever! não é escrever: é inscrever... o estar.

Thursday, November 15, 2012

ainda ontem

a vida ia ser assim, eu já sabia. a vida não ia ser fácil, eu já sabia. a vida viria, um dia, mostrar-nos a matéria da qual é feita. o sonho, a brincadeira, a folia, a risota, a leveza, e demais coisas que nós julgávamos ser eternas, viriam um dia vir a recair sobre nós e viriam mostrar-nos/cobrar-nos que o tempo de brincar a esta coisa que é estar vivo e viver a vida iria ter um tempo muito limitado. e isso aconteceu. e não é que isso aconteceu? eu, confesso, não estava preparado. não estava preparado para vir a lidar, tão perto, tão de perto, com o pesado peso pesado da vida... mas isso aconteceu, tem vindo a acontecer e cada vez mais acontece mais velozmente. confesso, comecei a prever isso; comecei a pressentir isso. primeiro começou com o medo. comecei a sentir medo, um medo cuja origem desconhecia mas cuja presença podia farejar. numa primeira fase pensei que nada mais fosse do que a minha fragilidade, os meus primários alarmes, a minha histeria a funcionar. mas agora está aqui, tem vindo a vir e a ficar aqui. estou aterrado, tenho medo, tenho muito medo, cada vez tenho mais medo da vida. viver é perder também, além de ganhar. e isso é muito duro de aceitar. viver é estar preparado para essa perda. a perda do domínio, do confortável, do tapete debaixo dos pés, do "nosso". viver é estar preparado para o "nosso" deixar de o ser. não gosto disso. não gosto, mesmo. preferia as minhas infantis noções de que as pessoas sofrem. quando era criança sofria mas sofria com a candura que uma criança, quase semelhante a um estado de profunda e inconsciente embriaguez, pode ter. agora tudo isto é ressaca; tudo isto é verdade e eu não quero esta manhã. não quero este hoje. quero o ontem, quero o voltar a ser aquela criança que sofre mas que sonha com um fim ou princípio do mundo. crescer é perceber que o mundo não começa nem acaba. crescer é perceber que o mundo é estar aqui para, no corpo e alma, ter de ver aquilo que os olhos e a alma, os sentidos, a razão, a emoção, simplesmente, não podem mais controlar/sonhar. crescer é mesmo uma verdade! crescer é mesmo uma verdadeira verdade.  crescer é deixar de brincar ao "faz de conta que um dia seremos". porque crescer é darmos por nós a, um dia, sem mais nem porquê, sem disso estarmos preparados, ser. e a ser como, apenas, conseguimos ser. estranho, muito estranho, tudo isto. ainda ontem tinha dez anos...

Tuesday, November 13, 2012

madalena - a bela há três anos adormecida.

faz hoje três anos que este dia, 13 de novembro, se tornou maldito, abominável, arrepiante, muito triste, para sempre muito triste. faz hoje três anos que a morte levou aquilo que a vida, tão gentilmente, me havia emprestado e que sempre tanto havia desejado: uma maninha mais nova. faz hoje três anos que o mundo perdeu brilho e se tornou um lugar mais sombrio. faz hoje três anos que algo cá dentrose petrificou e me tornou, de uma certa forma, inútil e mais estranho. faz hoje três anos que passei a ter de conceber que pessoas de quem tanto gosto, a rosa e o pontes, ficariam para sempre com uma dor que nem sequer consigo lá chegar perto e que gostava tanto que assim não tivesse de ser. faz hoje três anos que passei a ter de construir em torno de ti, madalena, uma manta de retalhos-recordações-imagens para paradoxalmente poder encaixar que nos tinhas deixado (ao mesmo tempo que todo esse processo servia/serve para não te deixar morrer). lembro-me de como estavas linda da última vez que te vi, lembro-me da surpresa, boa surpresa, ao ver-te entrar no sítio onde estávamos, lembro-me de te dizer que estavas a ficar uma mulher linda e que eu não estava preparado para isso porque para mim serias sempre uma menina; a menina que conheci com nove anos, a menina que levávamos ao colo para o carro a dormir nos ensaios na comuna, a menina que foi ficando cada vez mais espigadota, a menina com quem fomos viver e que achava muito normal o nosso namoro, a menina que um dia quase nos entrou quarto adentro, enquanto tinha ficado a nosso cuidado por umas horas, e nos ia apanhando em actos matreiros, a menina que mais tarde já era uma adolescente e com quem partilhava cigarros, serões, com a rosa, no inverno, no sofá, a rir das novelas da tvi, a menina que me ligava e que eu já sabia sempre o que queria: "hugo, posso usar o teu computador?" - "claro, madalena". a menina que me contava segredos que aos pais não se contam, pudera, eu era o irmão mais velho, a menina que só comia metade das fatias das pizzas e que me deixava os rebordos, a menina, que mesmo já uma latagona, eu ainda levava muitas vezes para o quarto a dormir (e já não era ao colo porque já eras mais alta do que eu). sempre me "descansou" um pouco saber que partiste a dormir. nem deste pela morte, sempre foste uma dorminhoca, nem deste por ela te levar, essa morte que a tantos estilhaçou para sempre. por seres bela e adormecida, minha querida mana mais nova, madalena, dedico-te a estreia da peça na quinta-feira e, na verdade, todos os espectáculos... por seres bela e adormecida. passaram três anos e ainda parece um sonho muito, muito, muito mau. passaram três anos e ainda espero que um príncipe te acorde e nos traga a nossa menina de volta.

Wednesday, November 07, 2012

a arrogância

haverá maior arrogância do que aquela que nos faz, ao sentir na ponta do mindinho despontar o poema, optar por tirar um macaco do nariz? 
sobretudo quando, lá fora, o vento ventania!

Tuesday, November 06, 2012

sintaxe


as asas queimam-se no fim  - ícaro disse no fim da queda.
e o oceano ferveu um pouco - em seu redor - enquanto a água se adocicou.
assim morreu, um pouco ele, assim musas se éter tornaram.
assim o querer passou a ser um ultrapassado verbo que a si mesmo
deixou de querer verbalizar.
assim se deitou a sintaxe!

Friday, October 26, 2012

fio

nada é fixo
tudo me falha
até tu
fio da navalha


o amor é um desenho que a gente faz, nas costas, daquilo que ser vivo nos traz!

feliz?

a minha redacção ia começar com: há...  e dela não vou fugir: há, de facto, uma forma de avaliar o quão felizes somos nós? há? se há... não sei. sei apenas o que sinto. e o que sinto é, cada vez mais, isto:
vivo aqui e agora e nada disso percebo
vivo o teu futuro, o teu presente e o teu passado, vivo-te sem isso querer
vivo à minha custa, à tua custa, custe isto o que custar
vivo sem fé, sem rumo, sem determinação
sem vontade de ir e de voltar (até isso me tiraram, até isso me deixei tirar)
vivo convicto das coisas todas; tenho amor para dar e vender;
vivo cheio de portugalidade, por um curso de água vivo e faço morrer.
vivo cheio de dores: cotovelos, ombros, anca e coração.
vivo cheio de rancores: sem mim nada foste senão um ião.
vivo cheio de recordações: sou ainda aquela criança entediada,
nos teus braços, contigo sou, a criatura a quem o mundo diz: nada.


não me apetece rimar mais
rimar mais a mim não apetece
questões destas são tão fulcrais
como o sol quente que me arrefece


tenho, e as pessoas mais directamente envolvidas na questão disso sabem, a plena noção de que não estou a viver no exacto tempo e espaço aquilo que destinado me é. os dias passam, os dias seguem-se, os dias sentem-se, caralho, os dias sentem-se, e eu, cada vez mais, tenho a sensação de que estou a gastar os meu dias no espaço errado. é cada vez mais claro que: ESTE NÃO É O MEU SÍTIO.

não sei onde fica, não sei onde é mas eu sei, e sinto, eu simplesmente NÃO SOU DAQUI.

não sei explicar isto melhor.

tentando apurar a explicação; o mais próximo que consigo é: A MINHA VIDA ESPERA-ME ALGURES.

uma das coisas mais maravilhosas que me aconteceu foi ter estado muito por dentro de um espectáculo chamado: Aguantar, um espectáculo do Cão Solteiro e nesse espectáculo havia a citação à seguinte frase do Octavio Paz: "eu não dava a vida pela minha vida". isto sempre me tocou, sempre nisso encontrei verdade. ainda hoje o sinto. 

eu não dava a vida por esta, minha, vida.

é um luxo, eu sei, ter esta minha vida. 

conquistei coisas, estou rodeado de gente, faço/fiz coisas e tenho, no que ao amor concerne, onde me focar.

mas é terrível assumir isto, sinto que nada disto é meu. sinto-me tão profundamente só. sinto-me a começar e sobretudo: sinto que a minha vida me espera noutro lugar.

onde? não sei. com quem? não sei. porquê? não sei. mas sei que não sou feliz...  

e outra questão vem: ser feliz é?

resposta: não sei!

talvez ser mais feliz seja não findar a questão.

ou talvez ser feliz o seja.

inquieto, sigo, o trilho da felicidade.

já fui mais e já fui menos...

mas feliz não sou... 

começo a perguntar-me se deixar de nisso pensar em algo ajuda...

ser feliz é, percebo até, é ser livre e disso eu pouco percebo.

ser livre é a coisa mais difícil e errática do mundo.

onde estás tu, felicidade?



Thursday, October 11, 2012

(des)aprender?


não vamos, no sentido de fazer como que uma fecundação absoluta e grave das coisas e consequentemente da vida, afirmar que a vida lhe era particularmente adversa ou malvada; vamos antes dizer que entre si e a vida existia uma não bem definida mas assaz clara e distinta barreira; uma espécie de teimosa membrana que dela, a vida, simplesmente o distanciava. havia, contudo, no mais íntimo dos seus íntimos, uma voracidade, uma faminta e alarve vontade de vida.
certo é que às situações, ocorrências, episódios da vida se dava. uma e outra e, ainda mais, outra vez dava por si mesmo a, no meio do oceano que o devir pode a ser vir, ter nas palmas das mãos a bem desenhada, e até pulsante, sensação de que algo que da vida provinha estava, de facto, a, perante a sua estupefacta capacidade de não, a vida, planear, ocorrer. e, uma mais vez, certo é que a esse facto, ao encarar desse facto, não se negava. nessas alturas, então, dava-se ao luxo, talvez luxo seja um errado termo, chamemos-lhe antes ousadia; dava-se à ousadia, às vicissitudes da ousadia, a coragem de se entregar. e pois que perante, e dentro de, tal cenário tudo por acontecer ainda estava.
tinha, e em maior destaque do que de todo o corpo o resto, um àvido par de mãos, um titubeante mas intrépido coração e uma cabeça maior do que ela mesma, para o melhor e para o pior, se julgava. e tudo isto, como de prever deixar não se pode, provocava todo um emaranhado de narrativas.
podia, ao a este ponto desta narrativa chegar-se, explanar-se agora todo o emaranhado que anteriormente referido foi mas, que fique desde já bem claro, não é isso que aqui ocorrer vai. vamos antes, e talvez porque isso o mais interessante efectivamente seja, fazer como que uma espécie de levantamento, ou inventário, das lucubrações que à sua acção apresentadas eram:

ponto 1:
sou-te aqui o que aqui me tens e certo sou que aqui certamente te tenho

quando desta premissa era detentor nada mais do que à mesma obedecer se propunha e porque àvido par de mãos, titubeante mas intrépido coração e cabeça maior do que a ela mesma se julgava a isso o impeliam. e eis que ali, e logo, uma nova, ou recorrente mas sempre como que acabada de conceber, narrativa, prontamente se instalava. resultado? um problema. e um problema leva-nos ao

ponto 2:
sou-te o que aqui sempre te fui e certo fui que aqui certamente te tive

nesta premissa entra em cena a rotunda, mas não assim tão perene e imperativa, esperança. a esperança temos de, desde já, referir sempre lhe foi como que uma espécie de combustível (caso contrário, como poderia afirmar-se que com voracidade à vida a sua alarve vontade se dava?) – a esperança era um linfático, e enfático, da sua vontade acompanhante e era na mesma que o seu entregue e meio tosco espírito, qual argonauta, se atrevia a navegar.

há que, neste momento da nossa singela e modesta narração, proceder ao desfazer de um atávico equívoco: a esperança nada de seivoso tem, a esperança é como que uma prancha de banda desenhada (e mais explicar sobre a mesma preciso deixa de ser). e isto leva-nos ao

ponto 3:
eu sou o que me permito ser enquanto algo ser me permito

par de mãos, coração e cabeça, que habituados a mais nada ser e nada mais procuram que os afins que a seu profundo íntimo recorram e socorram, nenhuma outra função para si reclamam.

e talvez seja este o ponto onde a membrana, a tal teimosa membrana que da vida o distanciava, por escassos segundos, rasgada pudesse ser para, com o lúdico olhar sobre a prancha de banda desenhada que a esperança é, mais longe na narrativa conseguisse ir.

mas:

não vamos, no sentido de fazer como que uma fecundação definitiva e grave das coisas e consequentemente da vida, afirmar que a vida lhe era particularmente adversa ou malvada; vamos antes dizer que entre si e a vida existia uma não bem definida mas assaz clara e distinta barreira. essa barreira tem um nome: viver no meio do viver.

e assim se enchem de coisas os dias. e assim, um dia, tudo eterna e, sem aparente sensação de história, tudo nada se torna. e assim, um dia, os dias: o dia da sua chegada e partida a isto que mundo se chama nada mais serão do que dias que, numa semana, num mês, num ano, numa década, num século, num milénio, num devir outrora alguém a respirar (des)aprendeu.