ipodonan

Wednesday, February 20, 2013

quem (não) parte e (não) reparte

não repartiu mas também não partiu, pura e simplesmente, deixou-se ficar. deixou-se ficar no que conhecia, no que lhe era próximo, familiar, vizinho; deixou-se ficar naquilo que tinha aprendido, ou aprendido a convencer-se, que era seu. 
e uma vez mais o sol se pôs e uma outra vez a noite veio. a noite veio sem pudores, sem anúncios prévios, sem sorrateiros pés de lã; a noite veio como tinha de vir, veio nocturna. fumou um cigarro, dois cigarros, três cigarros e quando deu por si já depositadas no Cinzano cinzeiro estavam vinte, pouco odorantes, beatas umas sobre as outras depositadas, quais corpos numa vala comum displicentemente, aos vermes, atirados. e foi então que acordou. acordou a meio da noite, que veio nocturna, sem durante a mesma, sequer, ter adormecido; acordou não para a vida mas, isso sim, para a morte e percebeu que a morte há muito se tinha instalado naquilo que o discorrer dos dias afirmara, talvez algo errada ou ilusoriamente, como vida; como: a vida. e foi então que a questão se lhe afigurou: é isto a vida, é isto uma vida, então, é isto que é a minha vida? muito imediatamente, e sem deixar de casquinar, de si para si disse: oh, quantas questões dentro há de uma mesma! e, nesse momento, efectivamente, adormeceu: conjugou concretamente o verbo.
doze passos dados estavam na sua de sempre rua, já alta ia a manhã, quando um pombo morto lhe caiu aos pés. ajoelhou-se e pegou no animal de cujo interior das penas se desprendia um odor confuso. um odor a podre e amanhã ao mesmo tempo; um odor estranhamente semelhante ao que se imagina ser o debaixo da terra ao mesmo tempo que anuncia uma memória de um nunca navegado mar. subiu a rua com o pássaro morto nas mãos e percebeu que se não partira nem repartira fora porque queria na sua vida tentar, em definitivo, voar. 
nessa noite bebeu vinho, partiu o Cinzano cinzeiro, atirou-o janela fora, e começou a escrever nas paredes da casa o que nela, e nele, ainda havia por, ali, viver. e às paredes confessou de quem gostava e de quem gostava de gostar. 
na manhã seguinte acordou sozinho mas com um bilhete na almofada.
o bilhete dizia: logo à noite trago eu o vinho. ainda bem que não me (re)partiste o coração! 

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