ipodonan

Sunday, September 27, 2009

a carta

A carta que eu te escrevi não é uma carta, é um assassinato, é uma guerrilha tectónica, é um pranto, uma larva, uma parte de mim que persiste e se esvai, uma mancha de crude, uma catarse ao contrário; nunca se escreveu (ao escrever-se: vai). A carta que eu te escrevi brinca com o tempo, rasga-se a todo e qualquer momento. É o curso, o desalento, é o rigor que não tenho, e tento, ah, se tento, é a ferver, é cimento; é uma carta que não consigo, e não quero, eu não quero, escrever. Não posso, eu não a posso, escrever. Nasces-me e morres-me aos bocados; não há escrita, não há paisagem que persista, e possa ser bonita, não há mão, não há antemão. Não tenho mão na carta. Não tenho onde colocar isto e, se persisto, é porque, ao mesmo tempo, desisto. Resta-me o consolo de saber que houve, eu sei que houve, aqui, ali, algures, onde quer que seja, ou fosse, o desenho do amor. Mas eu não não conheço a perspectiva e tu és, foste, serás, a teimosia da tela, folha, guardanapo em branco. E a escrita não acontece assim. não sei como se acontece; mas, sei que a escrita não se acontece assim. A escrita é o real, e frontal, sincero, confronto do atrito e da vida. A escrita é a nudez inscrita, no que fomos, seremos, somos. É o puro de nós, atroz, mas sempre com o grão da vontade/verdade na voz. E a pura da vontade, a pura da verdade é: era só o que faltava que eu fosse escrever-te uma carta! Não tens olhos para isso.

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