ipodonan

Friday, March 10, 2006

o rapaz e a rua

Esforcei-me, sem o planear, por perder todos os comboios, todos os aviões, todos e barcos e todas as composições que comportam em si a própria essência da cinestesia; para não poder parar de andar. Se cortei as unhas foi por ti, foi para não te arranhar. Foi para não te ferir. Foi para não te deixar marcas do encontro da tua pele com as minhas mãos. Desapareci-me. Podia esmagar-te agora. Posso esmagar-te quando eu quiser. Não existes. Posso esmagar-te ontem à noite e à hora de te encontrar. Não tens nome, nem cara, nem cheiro, nem história, nem vontade exactos. Não tens presença, não existes. Não existes aqui. Existes apenas nas ruas que percorreres e que escreverão a história do teu corpo, até ao dia em que me encontrares. Serão, a partir do nosso encontro, ruas passadas. Serão ruas passadas demais. Quando me encontrares, as ruas serão as mesmas mas parecer-te-ão completamente novas. Parecer-te-ão ruas acabadas de fazer. É isso que sentirás, eu sei. Vou sentir o mesmo. Isto é apenas entre nós os dois, cada uma na sua ponta da rua. Tenho vontade de abraçar pessoas desconhecidas na rua, de lhes dizer coisas doces ao ouvido. Tenho vontade de lhes dar notícias boas e realmente importantes. Tenho vontade de lhes dizer que estou aqui e que as vou salvar. Tenho vontade de as ouvir. Preciso de ouvir. Preciso de ouvir coisas que não sei que existem. Preciso de rir e de chorar com as pessoas desconhecidas na rua. Preciso de ser pasmado pela sua verdade e pela ideia que fazem da mesma. Preciso do espanto. Preciso de tocar em rugas profundas e em lábios que não têm por que, ou quem, se abrir. Não me comovo, vejo. Vejo como espero ser visto. Vou pelas ruas e finjo que sou feliz. Canto, euforicamente. Faço isso pelas ruas, por quem anda nelas e por mim. Faço isso porque quero que alguém diga ao chegar a casa, ou ao jantar, ou enquanto faz amor: “Olha, hoje, vi um rapaz feliz na rua.” Esse rapaz sou eu. E o meu segredo jaz comigo. Invento felicidades para me instituir feliz nas ruas. Eu, que me invento e instituo, recolho-te por aí. És milhares de pessoas, és toda a gente que anda na rua à uma da tarde, és toda a gente que come ao balcão de um qualquer snack-bar, és quem vende e és quem compra, és um casal de crianças ricas à saída do colégio, és uma excursão de turistas japoneses, de turistas espanhóis, italianos, suecos, dinamarqueses. És quem escolhe as canções nas estações de rádio, és quem arranja os semáforos, és quem corta o gás, és quem cola os cartazes, és quem tem acidentes, és quem anda. Não és mais do que o passeio do meu olhar. Caí numa rua e vi-me cair. Não me vi levantar. Estou aqui, caído, como tu vês, feliz. Não tiro os olhos do Sol. Estou feliz por ter caído. Estou cego. Cego e feliz. Estou mesmo feliz. E tu? Tu, que és esta cruzada de pés que me esmaga os membros, o crânio, a boca e pescoço, nada fizeste. Quando ponho o pé na rua, adormeço, para te sonhar. Vens, e és, aos bocadinhos/farpas/estilhaços nas mãos vazias de quem passa. Roubo-te das mãos dos desconhecidos e eles não dão por nada. Sabes porquê? Porque te roubo devagarinho, com jeito, perícia e silêncio. Porque estou a dormir e a sonhar enquanto ouço canções para te ensinar um dia. Durmo e sonho na rua a cantar. Olha, hoje, não vi mas senti nascer e morrer um rapaz feliz, que escrevi, na rua.

1 comment:

Anonymous said...

Es o amigo do meu amigo joao, que todos os dias oferece um sorriso a alguem no comboio?!? Pq e q eu nunca te encontrei? Stela