ipodonan

Friday, March 03, 2006

a aliança

Detenho-me, olho para eles continuada e insistentemente. Ele retribui-me a atenção, ela nem dá pela minha presença. Os meus amigos não lhes devotam a mínima curiosidade. Pois, as minhas atenção e curiosidade esta noite são trífidas e dedicam-se a eles, ali a três mesas da nossa, à feliz disposição dos meus amigos e a esta dor no céu da boca, resultado evidente da intensidade da noite passada, que me impede de saborear devidamente esta espetada esplendorosamente suculenta de carne mal passada. Eu e eles, o casal, estamos, ainda que no meio do mesmo desfile dos mesmos bifes, das mesmas sapateiras, das mesmas cervejas mistas e dos mesmos empregados revoltados com a vida, em partes distintas do mesmo mundo. Mas eu, nem por isso, deixo de os querer observar. Ele já foi bonito, ainda tem qualquer coisa bonita, não a trouxe para aquela mesa mas transporta, na forma lenta como boceja e fecha as pálpebras, algo de belo. Ela nunca foi bonita e tenho a certeza de que nunca o será. Estou aqui há uma hora e ainda não os vi trocar uma única palavra. Ela é feia de tão triste, ele belo de tão ausente. Ele olhou agora para mim, lentamente, como que a pedir socorro. Eu engasguei-me. Olhei para ela. Ela rodou o anel insípido que tem no dedo anelar, provavelmente uma aliança, a aliança daquela união. Rodou o anel e foi incapaz de olhar para ele. Ele bebeu um gole de cerveja e olhou para o anel dela. Ele não tem anel, deve tê-lo perdido de propósito. Mastigo com dificuldade. Apetece-me uma cerveja mas não me atrevo, talvez mais tarde. Ele olha uma vez mais para mim e rapidamente para ela a seguir. Percebo-o, ele não quer que ela descubra que está a trocar olhares comigo. Não quer que ela descubra os seus pedidos lentos de socorro. Não quer que ela descubra que tem estado este tempo todo a pedir-me que me levante e o leve para fora deste restaurante impessoal e que lhe conte coisas absurdas que o façam rir. Não quer que ela perceba o que, pensa talvez ele, ela não pode perceber. Ela não tira os olhos do anel. Ele não tira os olhos do infinito, nem de mim. Eu volto a concentrar-me na conversa que decorre na minha mesa e rio-me com os meus amigos. Pelo canto do olho ainda vejo. Vejo que ele precisa de rir fora daquela mesa e daquela aliança, daquela vida. Vejo que ela precisa que ele lhe diga que a ama, precisa que ele lhe diga que tudo vai correr pelo melhor, que ele lhe diga que nada no mundo o vai fazer derivar. Deixo de conseguir olhar para eles, não por falta de vontade mas por falta de coragem. Não tenho coragem para continuar a ser um espectador furtivo do arrastar inerte, silencioso e triste daquela união que de unido, cúmplice, fresco e apaixonado parece ter tão pouco. Não tenho coragem para continuar a assistir à tristeza passiva dela e à ausência empedernida dele. Não tenho coragem para ver aquele silêncio. Desejo que partam. Desejo nunca os ter visto. Tenho pena de os ter visto. Deixo de os ver. As minhas atenção e curiosidade bifidicam-se. Concentro-me na dor no céu da minha boca, enquanto vou degustanto a espetada, e luto com ela enquanto me tento distrair com as novidades e episódios hilariantes que os meus amigos me vão contando. A dor parece ir-se amenizando. A espetada acaba-se e eu e os meus amigos confirmamos o quão revoltado está com a vida o empregado que nos tem estado a atender. Como somos pessoas civilizadas, e como não estamos para nos aborrecer, acabamos por relativizar a situação entre dois pares de gargalhadas. A minha atenção unifica-se. Um silêncio denso e lento sobrepõe-se aos risos que partilho com os meus amigos. Olho para a mesa deles, do casal, e vejo que já lá não estão. Pois não, estão à minha frente. Passam pela nossa mesa. Mudos e lentos. Passam mesmo por nós. Ela olha para o chão, ele põe-lhe automática e instintivamente o braço por cima do ombro e olha para mim. Sorri e, uma última vez, olha para mim. Eu fecho os olhos lentamente e retribuo-lho o sorriso. Sem me engasgar, retribuo o sorriso mas não o olhar. Abro os olhos e murmuro aos meus amigos (que não me ouvem porque se estão a rir deliciosamente): amo-vos.

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