ipodonan

Wednesday, March 23, 2005

sem título

a cidade, de repente, tornou-se um evento claro perante o olhar. as ruas são colecções de charcos que se vazaram a si mesmos, à força de tanto serem espelhos sem uso regular.
as luzes são baças e sustentam como que uma, até agora desconhecida, alcalinidade. a fusão entre o olhar e as luzes da cidade é agora menos imediata e, é assertivo admiti-lo em tom de fugaz confissão, muito menos interessante. esta cidade sabe a pouco. sente-se pouco o fim deste silêncio; entre o rio e a cabeça. sabe a pouco este repousar os braços na amurada do carro e pensar/fingir que daqui para a frente tudo será possível. sente-se pouco esta vontade de acordar noutro lugar.
a cidade raciona as porções de saliva com que lubrifica as presas. e estas nem dão por isso. mesmo as presas mais hábeis, e nessa matéria não existe uma espécie de heráldica elucidativa ou figurativista que denuncie o estádio de empírico achievment da mesma, mesmo essas são deixadas levar-se por um estranho e suave torpore.
"todos somos tácitas presas" ostentam os outdoors de néon (e outros gases tão ou mais nobres) espalhados por todo tecido metropolitano. há uma jactância transcendental sempre presente nas mensagens que a cidade redige. e as presas, tanto quanto os predadores, jamais se permitem tentar descobrir brechas nessa imperativa transcendentalidade.
o coração da cidade, apesar de se apresentar sempre a descoberto, é, antes de tudo, revestido por uma melíflua, embora sinistra, perplexidade. o coração da cidade é um sinistro perplexo. e vale-se disso. não é raro chegar-se até ele; não é difícil deixá-lo ganhar. é impossível não sentir o seu chamamento.
o coração da cidade é um orgão dentro de um outro orgão que, por sua vez, mora dentro de um terceiro orgão, este sim, algo veloz. o terceiro orgão é um orgão emigrante. é um orgão cinético e toma a voz e o espanto como matéria fundente (processo responsável pela sua força motriz). o terceiro orgão, assim como todo o coração da cidade, é alcalino. é alcalino porque a motricidade está sempre impressa no conceito, e não na forma, de emigrar.
os predadores estão em permanente ligação, directa ou indirecta, com o terceiro orgão componente do coração da cidade. os predadores são máquinas de emigração e habitam as presas como se estas fossem países acabados de acordar.
a um grupo de presas chama-se continente. à congregação de presas chama-se mundo inteiro.
é necessário ser-se prudente ou, até mesmo, risonho para se poder decifrar todas as redacções compostas pelo coração da cidade. é importante usar óculos, ou lupas, ou telescópios como recursos protéticos que em tudo facilitam a tarefa em questão. a leitura é exigente, demorada, complexa, sinuosa, matreira e ziguezagueante. a leitura, note-se, não as mensagens.
a um grupo de predadores chama-se rosto. à congregação de predadores chama-se corpo todo.
aquando do chamamento, sazonal, do coração da cidade, presas e predadores vestem-se a rigor e deslocam-se simetricamente, sem alguma vez se aperceberem disso, até às janelas dos respectivos quartos. permanecem noite fora, suados e hirtos, à espera de um olhar oposto que se digladie com o seu. essas noites, além de longas, exalam um odor que perdura durante as restantes. isto, claro, até à ocorrência de um novo chamamento.

o rio é um depósito permanente. os rios são sempre depósitos. tal como em Varanasi, também aqui os restos mortais são oferendas às águas. este rio é ávido e meticuloso. e ninguém padece ao entregar-lhe como oferenda o coração defunto. o rio, talvez por obter a oferenda crua e em carne viva, jamais arrota de satisfação.

o coração da cidade é o único escritor.
presas e predadores conhecem-se melhor.
há mensagens e noites; poemas e gritos.
há jactância no solo e nos olhos aflitos.
só o rio ganha, só o rio estranha.
só o rio desenha a espelhada façanha.

só o tempo serena, no fundo do mar, a voz dos amantes que aprendem a estar.

3 comments:

Gil Cunha said...

Estou de malas feitas para ir de férias :) Porém não me podia esquecer de passar por aqui e deixar os votos de uma boa Páscoa. Até breve :) Bj**

onan said...

a minhas malas em breve também serão feitas. mas a ausência será comedida. obrigado pelos votos. correspondo e agradeço à, já sua apanagiante, gentileza.

boa páscoa.

cheers onan

onan said...

cara madame:
creio que predadores e presas se oferecem voluntariamente à sua função e, em última análise, ao seu oposto/complemento. a presa está para o predador como este está para a presa.
presas e predadores estão para o coração da cidade como este está para o mundo inteiro. o caminho, que percorrem e a própria cadeia alimentar são a história dos corpos.

cheers

onan