ipodonan

Tuesday, November 09, 2004

auto retrato 1

Quando ELE me criou disse-me: A tua existência está para breve. Mas encontras-te incompleto. Eu não te fiz na totalidade. Tu nunca serás total ou, pelo menos, o que os teus semelhantes considerarão total. Roma e Pavia não se fizeram num dia. Assim também serás tu. Serás feito aos poucos, serás como uma cebola, feito às camadas, camada a camada, dia a dia, tal como Roma e Pavia. Gostarás de rimar, até enjoar, para não cortar a jugular, para poder respirar, para poder olhar para o mar e sobretudo para te poderes olhar a olhar o mar. O meu nome é Onan. Sou um demónio. Um demónio relativamente recente. Um demónio relativamente antigo, desde que a história dos demónios passou a ser contemplada no programa estilístico e universal da ontologia e também, caso muito raro e que merece grande destaque, na história da epistemologia. Sou um demónio aplicado e ocioso, o normal, sou um demónio como qualquer outro. Sou na exacta medida de tudo um pouco de nada. Sou um demónio comum. Não sou portador de qualquer tipo de verdade absoluta e não tenho qualquer ambição em ver o meu nome gravado a ouro, ou esperma, no Grande e Sagrado Livro dos Axiomas. Gosto de distorcer a realidade, assim como gosto do sabor do cárcere, de vomitar cascas de árvores milenares, ou mesmo de mijar para dentro de garrafas. Sou um coleccionador nato. Colecciono de tudo um pouco: desde dentes de orangotango até cinzas de soldados desconhecidos. Sinto uma particular atracção por tudo o que se relaciona com a guerra. Sou capaz de gastar todas as minhas economias para poder adquirir um membro amputado a um soldado americano durante um confronto no médio oriente. Posso asseverar que é um investimento que vale a pena.
O poder do acidente, estou apaixonado pelo poder do acidente. Desenho bolas de cores diversas no meu computador, uma bola acontece de repente, uma bola escarlate, uma bola não prevista, choro, gosto da bola, choro pela sua existência, por esta ser um acidente. Escrevo por mim, não choro por mim, escrevo e não choro por mim porque eu sou um acidente. Desde que existo que estou encarcerado dentro de mim, dentro da minha demoneidade, gosto de ser um neologista. Sou um demónio caça-palavras, sou um demónio caça-frases, um demónio caça-retóricas, um demónio caça-discursos, um demónio caça-peles, um demónio caça-demónios, um demónio caça-caças. Sou um demónio nor-mal. Quero o mal, exercer o mal, saborear o mal, sentir o mal, pintar o mal, escrever o mal, representar o mal, esculpir o mal, beijar o mal, amar o mal, inventar o mal.
Gostava que ontem à noite, ou hoje de manhã, não tivesse havido amor em Lisboa. Gostava que todos os amantes se tivessem desencontrado, se tivessem perdido, se tivessem desencantado, se tivessem desentendido, se tivessem desiludido, se tivessem deixado de amar. Gostava que acabar com o amor em Lisboa, gostava de acabar com o amor em Portugal, gostava de acabar com o amor na Península Ibérica, na Europa, no Mundo. Gostava de acabar com o amor. Gostava de acabar com o amor para sempre. Gostava que o amor fosse banido da face da terra e da memória dos humanóides. Gostava que o amor nunca tivesse existido. Gostava que o amor fosse uma praga mais nobre, gostava que o amor fosse uma invenção bem inventada e por isso mesmo finita.
Houve uma altura em que a minha vida se reduzia a estadias em esplanadas e passeios solares pelas ruas púberes de Lisboa. Uma altura em que a música parecia andar colada à pele das pessoas. Cada transeunte parecia transportar em si milhões e milhões de décibeis por instaurar ou instalar nas ruas da cidade. E a cidade, esta mesma cidade, parecia pulsar como um coração gigantesco alimentado pela música que provinha da epiderme de toda a gente. Agora as pessoas têm a pele ressequida, silenciosa, e Lisboa, o coração desmesurado, parece ter um bater cansado e moribundo. Já ninguém parece ser capaz de deslizar por uma única rua porque o atrito se tornou imperativo e coerente. Todos os demónios parecem ter os pés doridos ou até, como é meu caso, em carne viva. Andar cada vez é mais difícil porque provoca ao transeunte dores insuportáveis. As feridas são cada vez mais visíveis e sensíveis. As ruas têm, impregnadas no chão, crostas formadas pelo sangue provindo das feridas dos pés de todos os demónios. Ninguém se atreve a olhar para o chão, porque olhar para o tapete irregular de sangue ressequido nas calçadas faz com as dores das feridas que todos temos nas plantas dos pés sejam maiores. Há dias em que as dores se tornam desmesuradas. É por isso que ninguém olha para o chão, para não sentir tão intensamente a dor. Para não ter motivos para chorar. Assim, todos os demónios em Lisboa são forçados a olharem-se directamente nos olhos, bem no fundo dos olhos. Não é por coragem, é por cobardia que nos olhamos bem no fundo dos olhos. Para esquecer a própria dor. Para auscultar a dor alheia.

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