ipodonan

Monday, March 24, 2008

apenas jardim - Apenas Maria

Apenas Maria
O dia está triste, choroso, velado e assim estou eu. Chove, dentro e fora do jardim, há vento, frio: tempestade. Um temporal enorme, na cidade e em mim. Toda eu chovo por dentro. Um vórtice na cabeça, um terramoto no coração.
Tento ver-me, por fora e por dentro, na vidraça desta janela. Serei eu esta? Reconheço-me? Serei eu realmente esta? Que fiz eu? Que alcancei? Que adjectivos terei? Gostava de lhes poder perguntar mas não tenho coragem. Gostava que todos me pudessem qualificar, já que eu não o consigo. Estou cansada, muito cansada, doente talvez.
Qual será o sabor da alegria? O sabor de uma gargalhada? Qual será a sua textura? Posso morrer agora sem nunca ter aprendido a cantar. Gostava de ter aprendido uma canção alegre, calma, serena, uma canção de embalar. Gostava de ter aprendido uma lengalenga. Gostava de ter patinado no gelo e boiado no mar. Gostava de ter engolido neve. Gostava de ter podido tratar de cavalos, de ter andado um dia inteiro numa roda gigante de onde pudesse ter visto toda a cidade. Gostava de ter bordado lenços com versos de amor. Gostava de ter festejado todos os meus aniversários, dava tudo para ter podido apagar todas as velas. Se pudesse voltar atrás faria tudo por tudo para saber tocar harpa, para dançar nua no deserto, para pilotar um avião, para ter uma receita de um bolo só minha, para viver com índios e cowboys, para pintar as unhas de amarelo, para ter ajudado os doentes e desprotegidos, para ter decorado todas as capitais de todos os países do mundo. Quando era pequena o meu sonho era ser pirata. Lembro-me de na estória do Peter Pan me sentir muito mais inclinada para os vilões. Lembro-me do dia preciso em que me apaixonei pelo Capitão Gancho. Foi ao fim de tarde e eu imaginei-me a ser resgatada por ele, a ser feita prisoneira. Fantasiei tanto esse amor. Esperei-o durante anos. Ele nunca chegou a aparecer. O Peter Pan também não mas esse não me interessava, sempre o achei amaricado. Eu não queria voar, queria, isso sim, navegar. Queria enterrar tesouros, saquear fortunas, usar uma pala no olho, beber rum e passar toda a minha vida a rasgar mares e oceanos. Queria ser pirata. Queria uma vida de aventura e de risco. Queria uma vida especial. Especial. Sim, foi isso que sempre procurei, qualquer coisa especial. É tão óbvio, tão óbvio, que até chega ser ridículo; ao mesmo tempo que é altamente enternecedor. Eu, que nada tenho de especial, sempre esperei por tudo o que de especial a vida tivesse para me oferecer. Sempre estive dependente dessa oferta. E o que é que fiz para a merecer? Nada, nada de especial.
Nada de especial, foi a frase que mais ouvi durante toda a minha vida. Foi a frase que sempre me definiu. A frase com que me definiram logo assim que cheguei a este mundo. Sou a mais nova de sete irmãs, todas chamadas Maria. A primeira das minhas irmãs chama-se Maria Certeza porque os meus pais tinham a certeza absoluta da data em que a conceberam. A segunda chama-se Maria do Espanto porque todos ficaram espantados com a sua prematura beleza; os meus pais não eram exactamente bonitos. A terceira chama-se Maria do Fogo; no preciso momento em que veio ao mundo os céus encheram-se de luz e de cor, devido ao fogo de artifício, como que a celebrar o seu nascimento. A quarta chama-se Maria Eurovisão porque quando começou o trabalho do seu parto a minha mãe estava a ver o Festival Eurovisão da Canção e não pôde ver a Simone de Oliveira a cantar a desfolhada. A quinta chama-se Maria Lunar porque nasceu numa noite de eclipse da lua. A sexta chama-se Maria Buarque porque quando estava no ventre da minha mãe era muito irrequieta e só se acalmava quando ela punha a tocar a Ópera do Malandro. Eu sou a sétima filha e sou Maria. Sou apenas Maria, porque relacionado com o meu nascimento não sobreveio algo de particularmente especial. Os meus pais olharam para mim e nada lhes ocorreu, eu nada lhes inspirei. De seguida, olharam um para o outro e disseram: não tem nada de especial, fica Maria, apenas Maria.
E se eu morrer agora, o que há para dizer sobre mim? Possivelmente nada, nada de especial. Há uma coisa que sempre me destacou mas não é uma coisa especial. Não é especial porque não é feliz e as pessoas só consideram especial algo que é feliz, sublime, encantador. A minha quase especialidade não é encantadora, é triste, dissuasora. É uma falha, um handicap. Nunca fui capaz de produzir uma única gargalhada. Nunca me ri, nunca manifestei o mínimo indício de alegria. Nasci, cresci e possivelmente irei morrer sisuda. Procurei em vão até ao dia de hoje a minha gargalhada. Quando fiz doze anos ofereceram-me um gravador para que eu pudesse gravar os poemas de amor, sombrios e tristes, que tão bem sabia recitar. Não gravei um sequer. Em vez disso comecei a gravar sorrateiramente as gargalhadas das outras pessoas. Comecei por gravar as das minhas seis irmãs, depois as dos outros meninos na escola e depois as dos adultos. Ficava dias a fio de orelha colada às portas dos vizinhos, sempre atenta e pronta a gravar uma gargalhada quando esta do nada surgisse. Gravei milhares de gargalhadas em toda a minha vida. Reproduzi, em rigorosíssimos ensaios, cada uma delas até à exaustão. Ainda o faço. Mas nenhuma delas me serve, nenhuma me adoptou. Sei que não é assim que vou encontrar a minha própria gargalhada mas não consigo evitar a gravação e a reprodução das alheias. Tornou-se um vício. Sim, tenho de admitir; admitir sobretudo para mim mesma: o que faço não é mais do que um vício. Vazio, falsamente compensador, autoritário como todos os vícios. Os vícios são tiranos e nós tão pequenos. Os vícios não são nada de especial.

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