ipodonan

Wednesday, February 22, 2006

saudades e a ilusão do infinito

Sinto saudades do cheiro das carcaças com manteiga e do leite achocolatado com que me deleitava no recreio da escola primária. Sinto saudades do ardor da poeira nos meus joelhos, tão ensanguentados, após tantas quedas. Sinto saudades da dor,latejante no rosto e humilhante no ego, que sucedia a cada bofetada que a minha mãe me dava.
Sinto saudades de chorar por tudo e por nada. Sinto saudades das tardes no infantário; enquanto todas as outras crianças dormiam, eu permanecia acordado a concluir que não gostava muito da minha vida.
Sinto saudades da alegria com que eu comia sorvetes e vestia mangas curtas quando o calor menino de Maio chegava. Sinto saudades do meu nervosismo e geral azáfama que precediam todas as minhas festas de aniversário. Sinto saudades de ter medo do escuro. Sinto saudades das noites que eu passava sozinho, a chorar, pregado à janela da marquise, porque a asma não me deixava respirar e a vergonha me impedia de acordar os meus pais. Sinto saudades de ainda não saber andar de bicicleta. Sinto saudades de acreditar que nos filmes os actores morriam com as suas personagens e sinto saudades de achar que isso era lindo. Sinto saudades de acordar às cinco da manhã para acabar a exorbitância de trabalhos de casa a que o professor da 3ª e 4ª classes nos obrigava. Sinto saudades do pânico que tinha das velhas: as minhas vizinhas da frente, duas figuras dignas de um filme de terror, beatas que só falavam de espíritos e cuja mais velha delas escondeu o corpo da irmã, debaixo da cama, durante três semanas depois de a ter levado à morte por subnutrição porque pensava que o diabo se tinha alojado na perna da pobre coitada quando esta estava a convalescer de uma fractura. Sinto saudades das noites de santos populares: das fogueiras, das sardinhadas, dos balões de papel e do cheiro intenso da Marcela que cobria o chão das ruas de Olhão. Sinto saudades de saber de cor e salteado as letras das músicas concorrentes aos festivais da canção. Sinto saudades da crise de nervos
que sucedeu o meu primeiro cigarro, aos onze anos, e de como nessa noite, para meu tormento, na televisão exageraram na transmissão de anúncios anti-tabagistas.
Sinto saudades de ter uma fixação pelo penteado do John Travolta e de odiar todas as cabeleireiras por nenhuma o conseguir reproduzir em mim. Sinto saudades de receber presentes no Dia Mundial da Criança. Sinto saudades de andar sentado aos ombros do meu avô Francisco, um homem seco e alto, que tinha uma voz queimada de décadas de cigarros e também da minha avó Augusta que via muito mal e me chamava coirão. Morreram ambos sem que eu vertesse uma única lágrima. Sinto saudades das ofensas verbais e físicas que eu e meu irmão infligíamos um ao outro quando ficávamos sozinhos em casa. Sinto saudades do cheiro dos assados da minha mãe, nas manhãs de Domingo. Sinto saudades de pedir à minha avó Carminha para me cantar aquela canção, muito triste, da velhinha que era ceguinha e que acabava por ser atropelada.
Sinto saudades das férias grandes. Sinto saudades de concluir que faltavam dezassete anos para o Ano 2000, de me questionar se o mundo iria acabar
e de pensar que o futuro era uma coisa estranha.
Estamos em 2006, tenho vinte e nove anos e sinto saudades.
Sinto saudades de tudo me aconteceu até agora. Sobretudo na infância, precisamente por serem esses os acontecimentos mais distantes.
E estas saudades não acontecem porque eu me queira recuperar ou queira reviver
a minha história. Sinto-as porque me apercebo realmente que a verdadeira condição do devir, do crescimento e do conhecimento, está encerrada na forma como tudo se torna simultânea e exponencialmente irrecuperável e ilusóriamente infinito.
Tenho saudades porque descobri o verdadeiro valor e a verdadeira utilidade da memória.
Tenho saudades porque quando estiver velho me quero lembrar deste dia.

(comecei a escrever isto há uns cinco anos. hoje acabei. não sinto, hoje, o que acima está escrito. mas sinto saudades de sentir.)

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